Finalmente, identificamos um terceiro eixo problemático em torno do qual a historiografia marxista portuguesa se desenvolveu. Já não se trata aqui de problemas relativos às determinantes estruturais e à autonomia da acção, mas de questões relativas à forma desta mesma acção. Vemos estas questões ganharem particular acuidade em trabalhos de historiadores como António Borges Coelho, cujos primeiros estudos são produzidos nas prisões em que o regime o manteve entre os anos 50 e o início dos anos 60. É especialmente relevante, a este respeito, a importância atribuída à questão dos concelhos (Coelho, Comunas ou Concelhos, 1971). Para Borges Coelho, estes não foram simples concessões do poder real, mas realidades históricas construídas – e se podemos importar a expressão para o caso português – “a partir de baixo”. Em Borges Coelho, os concelhos surgem enquanto realidades historicamente poderosas mesmo se confinadas comunitariamente, o seu poder residindo na sua capacidade indiciária e na sua espectralidade, da sua experiência ressaltando a possibilidade de «outros parâmetros de vida colectiva». Na hora de tentar compreender a emergência do Portugal moderno que teria aflorado espectacularmente em 1383, diz-nos o historiador que os efeitos históricos dos concelhos não devem ser menosprezados.
A sensibilidade de Borges Coelho à possibilidade de novos tipos de relações de poder contrapunha-se a uma outra sensibilidade, que melhor se encontra nos textos de outros historiadores marxistas e que podemos classificar como vanguardista. De acordo com esta sensibilidade vanguardista, o poder político “a partir de baixo” seria condição necessária mas nunca suficiente da transformação histórica. No que Álvaro Cunhal escreveu sobre as lutas de classes em fins da Idade Média, o lugar das classes trabalhadoras era determinante, mas, em última instância, era também sempre determinado por outrem, nomeadamente o herói burguês que tanto liderou como traiu aquelas mesmas classes trabalhadoras. Sob o lema da traição (na figura de um Miguel de Vasconcelos), da ambiguidade (na figura de um D. Nuno Álvares Pereira) ou da ausência (na denúncia por Victor de Sá da inexistência de liderança da classe operária, a propósito da história do setembrismo), houve na historiografia marxista, a despeito das concepções de poder veiculadas pela análise de Borges Coelho ao movimento concelhio, uma concepção vanguardista da mudança histórica.