A passagem no marxismo de uma crítica da nacionalização do passado para a afirmação de um passado nacional alternativo participou de uma viragem mais ampla, que teve lugar no quadro do movimento comunista e que levou intelectuais marxistas e dirigentes comunistas a procurarem apresentar-se como os melhores representantes da nação e do povo. As circunstâncias históricas desta passagem – desde o insucesso da revolução mundial na sequência de 1917 até ao ‘socialismo num só país’, à adopção de uma estratégia antifascista nos anos 30 e à nacionalização do anticolonialismo – são conhecidas, a sua expressão revestindo uma enorme amplitude temática, da literatura à economia e ao desporto, e abrangendo também a história (Mevius, The Communist Quest for National Legitimacy in Europe 1918 - 1989, 2011; Neves, Comunismo e Nacionalismo em Portugal, 2008).
Em traços largos, acerca do conteúdo da visão alternativa do passado nacional que foi sendo construída pelos comunistas, podemos desde já dizer que nela assume função propulsora a tensão entre duas grandes forças processuais, que se terão digladiado ao longo de quase todo o passado português: de um lado, o processo de advento da modernidade, que terá o seu momento alto na revolução de 1383, embora pontuando também 1820 ou mesmo 1910; do outro, a persistência de uma contra-modernidade, ressurgida a partir de 1926, na sequência da Inquisição e de episódios como a perda de independência às mãos do domínio filipino em 1580.
O principal critério que preside a esta divisão de forças – que, não deixando de corresponder ao esquema dialéctico hegeliano e marxista, guarda também semelhanças com visões como as de António Sérgio ou Vitorino Magalhães Godinho – é de índole social. Com 1383 temos a alegada emergência histórica de grupos e classes sociais que, da burguesia aos rudimentos do proletariado urbano e rural, irão fazendo passar o facho do progresso de mão em mão, assim corporizando a modernidade, amanhã por vir. Por sua vez, a visão marxista identifica no passado nacional protagonistas nobiliárquicos, militares e religiosos cuja matriz reaccionária considera inspirar o próprio Estado Novo, tomando-os como baluartes da contra-modernidade. Todavia, o critério social de divisão articular-se-á igualmente com um critério de índole nacional, de tal modo que a modernidade surge, à luz marxista, como um desiderato que depende da afirmação nacional do país, ao passo que a contra-modernidade, sendo movida pelos interesses das classes possidentes, é indiciada pela perda da autonomia e independência nacionais às mãos de potências estrangeiras, do reino de Castela às multinacionais norte-americanas, passando pela dominação britânica.