Neste contraste entre sensibilidades mais igualitárias e mais vanguardistas, estão em causa diferentes modos de entender a emancipação. Enquanto uma sensibilidade igualitária se mostra devedora de um entendimento do processo emancipatório enquanto exercício de autonomia, a sensibilidade vanguardista mostra abertura para pensar o lugar da heteronomia nesse mesmo processo, em conformidade com uma visão teleológica do devir histórico, de acordo com a qual a classe (mas poderia também escrever-se a nação) se encontra numa condição de “atraso” de que só poderá libertar-se orientada por um elemento “vindo de fora”.
Do ponto de vista marxista-leninista, que se tornou a forma dominante do marxismo no século XX, este elemento assume preferencialmente a forma do Partido Comunista, mas vale a pena sublinhar que a concepção vanguardista da política está longe de ser um exclusivo da cultura política marxista-leninista ou, sequer, da tradição marxista. É essa concepção que podemos encontrar, ainda que em termos diversos, na reflexão historiográfica de vários liberais e republicanos que discutiram o caso histórico da burguesia e problematizaram o que designaram como o “atraso” português.
O Marxismo além dos Marxistas
Julgo ter resultado claro que o facto de estarmos perante uma tradição com nome próprio – o marxismo – não significa que estejamos face a uma realidade homogénea. Na verdade, falamos de historiografia marxista em Portugal também na medida em que falamos de uma tradição plural. A esta falta de homogeneidade interna da historiografia marxista em Portugal acresce, ainda, o facto de o marxismo ter estado disponível ao uso de historiadores que não reivindicaram uma simpatia ou identidade marxista. Se nos historiadores marxistas de que até aqui falámos é possível identificar a presença de elementos que eram já presença em investigações historiográficas de inspiração republicana, deve também ser sublinhado que, nas últimas décadas do século XX, a presença do marxismo na historiografia portuguesa se fez sentir além daqueles que mais frequentemente são classificados como marxistas. Os percursos intelectuais de historiadores como Miriam Halpern Pereira e António M. Hespanha não podem ser compreendidos sem atendermos à sua relação, a um tempo cúmplice e crítica, com o marxismo – no caso de Pereira, interpelando o marxismo a partir da tradição dos Annales e da História Social, no caso de Hespanha mobilizando contributos como os de Michel Foucault tendo em vista uma renovação da História do Direito e da História do Estado (Pereira, Livre-câmbio e desenvolvimento económico, 1971; Hespanha, As Vésperas do Leviathan, 1986). O mesmo, embora aqui seja possível falar de uma filiação deliberada do autor no campo do marxismo, pode ser dito a respeito da leitura a que Fernando Rosas submeteu o período do Estado Novo, na qual vemos cruzarem-se os temas do modo de produção e da luta de classes e um entendimento fundamentalmente político – com ressonância jacobina – do papel do Estado enquanto regime (Rosas, O Estado Novo nos anos trinta, 1986).