Mudança radical de focalizadores, ironia e paródia
A focalização diferente da tradicional proporciona, mesmo se o narrador é heterodiegético (em terceira pessoa), uma visão heterodoxa dos acontecimentos, que, frequentemente, choca com a versão da História oficial. É o caso de Memorial do Convento (1982), de José Saramago, onde a construção do Convento de Mafra é visionada pelos operários e não pela nobreza ou clero, como consta dos documentos oficiais. A intromissão do maravilhoso com Baltasar e Blimunda favorece a representação do imaginário de uma sociedade dominada por um obscurantismo ferrenho. O romance de Miguel Medina, Além do Maar (1994) propõe uma nova versão da viagem de Vasco da Gama, focalizada pelos marinheiros e degredados, tornando-se num dos casos mais curiosos de múltiplos pontos de vista, e de desvio, na tentativa de desmitificar o passado, passado que determinados interesses nacionais tornaram mais lendário do que referencial.
Apesar da ironia e da paródia estarem frequentemente subjacentes na metaficção historiográfica pós-moderna, o certo é que nem sempre elas constituem o traço dominante. Todavia há alguns casos em que só através destas figuras retóricas se consegue apreender o verdadeiro significado dos textos. A Paixão do Conde de Fróis (1986), Quatrocentos Mil Sestércios seguido de O Conde Jano (1991) e Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde (1994), de Mário de Carvalho ou Tocata para Dois Clarins (1992), de Mário Cláudio e Breviário das Más Inclinações (1994) e O Relógio do Cárcere (1997) de José Riço Direitinho, são casos em que uma leitura literal acarretaria forçosamente uma deficiente interpretação, por vezes até de sinal contrário. No romance de Mário Cláudio, por exemplo, a apologia do Estado Novo só poderá ser entendida como irónica e transgressiva.
Histórias alternativas. anulação do tempo
A alteração da história canónica leva a uma reescrita do passado, reescrita que pode atingir os limites do (in)verosímil. É visível em vários romances a multiplicidade de leituras de que pode ser alvo determinado facto, dando azo a interpretações diversas ou até subversivas, podendo mesmo personagens inventadas influenciar o decorrer de acontecimentos tidos como referenciáveis, ou factos verdadeiros serem transferidos de uma época para outra, contrariamente ao que se passa no discurso histórico propriamente dito. É essa tentação de construir outra história, de modificar o passado, não já pela apresentação dos mesmos factos com diferente focalização, mas pela transformação pura e simples desses factos, que seduziu romancistas como Saramago, Agustina Bessa Luís, Vasco Pereira da Costa, Augusto Abelaira, António da Silva Graça ou Mário Cláudio. Herberto Helder, em Teorema (1963) propusera já uma nova teoria para explicar a morte de Inês de Castro, baseado numa desconstrução lúcida e irónica do mito. Agustina Bessa Luís, em romances como O Mosteiro (1980), A Corte do Norte (1987), Ordens Menores (1992), O Concerto dos Flamengos (1994) e As Terras do Risco (1994), joga à vontade com a História, não se coibindo de afirmar que D. Sebastião não morreu em Alcácer-Quibir ou que passado e presente se interpenetram, não estando aquele nunca verdadeiramente terminado. O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), História do Cerco de Lisboa (1989), O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) A Viagem do Elefante (2008) e Caim (2009), de José Saramago são verdadeiras recriações, chegando ao ponto de, no romance de 1989, levantar as hipóteses de alteração da História através de uma modificação consciente efetuada por um revisor tipográfico que decide que os Cruzados não ajudaram D. Afonso Henriques a conquistar Lisboa. Podemos ainda considerar casos como os de O Bosque Harmonioso (1982), de Augusto Abelaira, Memória Breve (1987, contos), de Vasco Pereira da Costa, Viagem ao Fim da História (1995), de António Silva Graça e As Batalhas do Caia (1995), de Mário Cláudio.