A relação entre História e Literatura é um dos elementos fundadores do que hoje consideramos como o fenómeno literário e, muito embora sob diferentes configurações, tem contribuído para a percepção das duas formas de discurso como mutuamente fecundáveis e em vários aspectos certamente próximas. A posição que aqui se defende repousa sobre a compreensão de que os vínculos entre História e Literatura, sendo de compreensão essencial para ambas, devem reflectir a sua variação histórica. Esta variação não significa senão que a partilha entre os vários terrenos de expressão humana não é eternamente fixa. Tal não significa subscrever uma posição em que surgissem fundamentalmente diluídas as diferenças que foram sendo historicamente constituídas entre facto e ficção. Essas diferenças, embora variáveis, são de consideração central quer para a História quer para a Literatura. Argumentar o contrário, numa perspectiva de relativismo extremo, tornaria na prática inviável, entre muitas outras coisas, esta mesma reflexão.
Nos últimos anos, e na sequência de trabalhos como os de Maurice Halbwachs, Pierre Nora ou Jan e Aleida Assmann (Maurice Halbwachs, La Mémoire Collective, 1967; Pierre Nora, Lieux de Mémoire, 1997; Aleida Assmann, Cultural Memory and Western Civilization…, 2011), um outro conceito veio tomar um peso muito especial no contexto que aqui nos interessa: o conceito de memória, cultural e colectiva. Ele veio chamar a atenção para o facto de que o discurso histórico, feito de uma sedimentação e cristalização do acontecido através da memória colectiva de uma comunidade, tem com esta uma relação também muito especial, que a literatura partilha. A negociação entre memórias potencialmente não-coincidentes, ou mesmo potencialmente conflituais, vai sendo feita através de diversos tipos de discurso, e ocorre tanto na História como na Literatura. Por vezes, a História alimenta-se do que a Literatura estabilizou, como memória do passado para o futuro. Outras vezes, é a Literatura que vai buscar à História o enredo do acontecido. Assinalemos ainda a reflexão que, a este propósito, a tradição clássica da teoria da memória e da retórica veio sublinhar, ao distinguir entre memoria rerum e memoria verborum (Frances Yates, The Art of Memory, 1966). Na realidade, ao separar a possibilidade do exercício (e do treino) da memória das coisas, ou seja, do acontecido (transposto para o discurso como tópicos), e da memória das palavras (por exemplo através do exercício da citação), a tradição clássica sublinha que, em certos casos, a História aparece na Literatura como representação do presenciado (é este o caso por exemplo de alguns historiadores do século XVI, ou de muitos dos que, enquanto testemunhas, escreveram sobre o Terramoto de 1755); mas na maior parte dos casos trata-se de representar uma História que foi já objecto de discursivização (ou discursivizações) anterior(es), e cuja conformação literária (ou letrada) é feita sobretudo sobre a memória das palavras que a constituiu enquanto objecto. Entretanto, o certo é que a “ficção da História”, tal como a encontramos nesse género maior que é o romance histórico, é fundamentalmente guiado pela possibilidade de construir uma narrativa a partir apenas da memória das palavras que do vivido se conservou, memória essa mais ou menos longínqua, mais ou menos fidedigna.