Deste ponto de vista, poderíamos considerar Frei Luís de Sousa como um exemplo daquilo a que Edward Said (On Late Style, 2006) chamou o “estilo tardio” (late style), uma forma de escrita particularmente pungente, surgindo usualmente na parte final da vida criativa. Por ela, diz Said, o escritor não atinge uma visão global da obra e da vida capaz de se exprimir pela “harmonia e resolução”, mas pelo contrário manifesta “intransigência, dificuldade e contradição irresolvida” (7). Já em Viagens na Minha Terra, o seu romance dito contemporâneo, as cicatrizes da História são elas próprias também muito visíveis: pode por exemplo dizer-se que o título, na sua formulação plural e simbólica, sublinhada pelo próprio Garrett, quer significar este percurso, já minado por um evidente desencanto, de um homem que crê profundamente que o futuro apenas existe porque a “sua terra” saberá continuar existente – mas ao mesmo tempo de um homem que vê o seu presente ser ocupado por figuras “usurariamente revolucionárias” e “revolucionariamente usurárias” (como o barão), que tinha acreditado não serem mais possíveis. As viagens são, como diz, ao mesmo tempo físicas e simbólicas: porque o levam até Santarém, porque atravessam, por meio de significativas elisões, a memória da história portuguesa, desde a Idade Média até ao presente, porque permitem ao narrador manifestar os seus diversíssimos conhecimentos, interesses, leituras e em geral atitudes. E porque permitem dar a conhecer outra actividade histórica e arquivística em que Garrett foi pioneiro em Portugal: a recolha do Romanceiro oral de tradição medieval, que nunca até então tinha encontrado forma escrita.
Movimento análogo é o que encontramos no grande escritor do presente e do passado que é Camilo Castelo Branco. Ele, que não é comummente considerado como paradigma do chamado romance histórico português, deve ser encarado como um dos mais intensos “historiadores” das convulsões que marcaram a sociedade portuguesa com a transição do Antigo Regime para a sociedade contemporânea. A passionalidade camiliana é uma passionalidade historicamente inscrita, em que os direitos do coração e do indivíduo se afirmam e revoltam contra o peso da tradição, do passado e da lei instituída pela sociedade. Contra as leis sociais e o seu peso autoritário e prepotente, ergue Camilo o direito individual, que só pode enunciar-se pós-Revolução Francesa. Teresa e Simão, do Amor de Perdição, não são apenas os heróis de um amor tão intenso que o mundo não o pode conter. Eles são também os heróis históricos dos pequenos/grandes combates que o microcosmos familiar encena, e onde a História social se manifesta: a família é em Camilo o lugar central daquilo que Michel Foucault (“Droit de mort…”, 1976) emblematicamente analisou e caracterizou como micropoder. Nele, encontramos assim uma outra forma de encarar e praticar a ficção histórica: não se trata nem de usar a história individual para chegar ao grande fresco histórico; nem de utilizar o enquadramento da História para o dissolver na intriga pessoal. Mas de mostrar como História e pessoalidade se contaminam de forma tão intensa e inextricável que é impossível olhar para uma sem detectar a outra; que a História se faz dos desencontros e violências domésticos, como dos que o palco social manifesta na cena política mais vasta.