A epopeia Os Lusíadas tem de ser considerada, no contexto em que escrevemos, como o lugar geométrico em que a História de Portugal é condensada, interrogada e também profeticamente concebida. Na realidade, o texto camoniano é um dos altos lugares da nossa memória histórica, inscrita na literatura. Não apenas por aquilo que ele é, enquanto texto, e enquanto “lugar de memória” (Pierre Nora) de um conjunto de saberes extraordinário, espécie de summa que, na realidade, encontra no texto de Dante, A Divina Comédia, o seu modelo medieval: organização dos discursos e dos saberes históricos do mundo. Não apenas pelas inúmeras dimensões especificamente históricas que Os Lusíadas reflectem e que manifestam, e de que daremos como exemplo paradigmático o imaginário guerreiro e cavaleiresco que transporta a memória da fundação da nação para a escrita da Expansão além-mar. Mas também pelas razões de memória literária que implicam que o texto camoniano constitui, desde a sua publicação, o lugar geométrico para que converge, de variadíssimas maneiras e com diversíssimas tonalidades axiológicas e de avaliação histórica, toda a história dos textos e das instituições literárias em Portugal e em português. Sejamos claros. Uma forma inigualável (de facto inigualável) que Os Lusíadas têm de reflectir a História e serem eles mesmos História é o modo como representam o marco em função do qual nada do que virá depois deles poderá ignorar que eles ali estão. Para utilizar uma expressão feliz de Manuel Gusmão, Os Lusíadas são talvez o melhor exemplo, em Portugal, de algo que fica inscrito para que, depois dele, outros não possam deixar de saber que vêm depois dele. Centrar-nos-emos, aqui, e em primeira instância, na forma como aquilo que a epopeia camoniana faz com a História de Portugal nela recontada transita para os séculos seguintes, sofrendo alterações várias que, por isso mesmo, a transportam até ao nosso presente. Isto corresponde à convicção de que um dos modos de inscrição na História consiste não apenas na possibilidade de representar discursivamente o passado, o que muita da literatura conscientemente faz, mas também na capacidade que alguns textos, como Os Lusíadas, têm de se manifestarem eles mesmos como objectos trans-históricos, que não acabam de voltar. Assim, mesmo se dando alguma atenção à forma como a epopeia de Camões reflecte uma narrativa “historiográfico-literária” que configura alguns dos episódios mais conhecidos da nossa História (caso paradigmático do episódio de Inês de Castro), daremos particular ênfase ao modo como o texto de Camões sobrevive na História e suscita revisitações muito diversas entre si, migrando assim para géneros, períodos e autores muito distantes, por vezes ao ponto de poderem surgir como seus antípodas. Mas é precisamente o facto de Os Lusíadas representarem um eixo axiológico da história da literatura portuguesa que não pode aqui deixar de ser considerado como um factor extraordinário, que nenhum outro texto consegue igualar.