As relações entre Literatura e História passam de forma privilegiada pelos conteúdos que partilham ou que põem, total ou parcialmente, em comum. Mas as relações entre ambas ultrapassam, em muito, a questão dos conteúdos. O reconhecimento de uma dimensão mais poliédrica, que não se esgota na questão dos conteúdos, é um aspecto decisivo desta entrada. Em primeiro lugar, podemos falar da importância que uma certa vontade de realismo inevitavelmente traz para a sedimentação do facto histórico, ou da inserção em contexto histórico, enquanto factor-chave para a construção literária. Na verdade, a ideia de que, de uma forma ou de outra, essa vontade de realismo (que encontramos, por exemplo, em algumas obras historiográficas de Oliveira Martins, caso da História de Portugal, 1879 ou das biografias Os filhos de D. João I, 1891 e A Vida de Nun’Álvares, 1893) faz parte intrínseca da imaginação literária, e não se opõe a ela, transporta para dentro da literatura uma particular atenção a esse especial efeito de real que é a consciência histórica. Em segundo lugar, e relacionado com este aspecto, embora distinto dele, a obra literária pensa-se como produto dentro da história, ela mesma como um objecto histórico manifestado não apenas no momento da sua efectiva feitura mas ainda nos diversos momentos (potencialmente infinitos) da sua (re)emergência histórica. A literatura, enquanto produção artística, tem diversas formas de sobrevida, entre as quais uma sobrevida intermitente, com desaparecimentos e reaparecimentos imprevisíveis, e historicamente sempre significativos. O facto de o fenómeno literário existir na história é, deste ponto de vista, fundador. Em terceiro lugar, a construção da literatura é sempre, também, uma construção histórica. Nos últimos séculos, ela tem manifestado essa consciência através de duas representações principais: a que, a partir do final do século XVIII, e sobretudo ao longo do século XIX e início do XX, faz reconhecer na história literária um instrumento essencial para a construção de uma simbólica da nação comum, sustentando-se num paradigma de continuidade; e a que, mais recentemente, se debate com a ideia de cânone literário, para chegar à compreensão de que apenas é possível falar dele como uma conformação historicamente variável, e de que essa mesma variabilidade é uma das condições para que a ideia de um Portugal histórico possa ser pensada em literatura. Finalmente, em décadas recentes, e na sequência das reflexões sobretudo de Hayden White (Metahistory. The historical imagination…, 1973), assistimos à emergência de uma aproximação entre texto historiográfico e texto ficcional, com base numa argumentação que em ambos reconhece a dimensão de “artefacto” narrativo. Sob esta perspectiva, não seria apenas o texto literário que procuraria aproximações ao texto historiográfico, mas também este que partilharia, com aquele, mecanismos de produção de sentido que ganhariam em ser investigados como tal.