No caso especificamente português, fará sentido sublinhar uma outra ideia fundadora: a de que a consciência de um tempo histórico longo, enquanto identidade portuguesa retrospectivamente constituída, implica muitas vezes um “peso” histórico de que as várias expressões culturais se encontram imbuídas e que estruturalmente manifestam. Na realidade, a “ideia de Portugal”, sobre que pensadores como José Mattoso e Eduardo Lourenço (Eduardo Lourenço, Pequena meditação europeia, 2011; José Mattoso, Identificação de um país…, 1985) têm reflectido, sob perspectivas diferentes mas complementares, implica que existe uma consciência histórica de Portugal profundamente embrenhada na consciência das letras portuguesas e, em consequência, daquilo a que virá a chamar-se, a partir do século XVIII, a literatura portuguesa. Na sua mesma diversidade constitutiva, a ideia de um país cujas raízes medievais são fundadoras, e cujo período áureo é feito coincidir com o período da Expansão (séculos XV-XVI), traz inevitavelmente consequências decisivas para a imaginação literária fecundada pela imaginação histórica. A memória histórica relativa à história de Portugal, uma história cujas raízes medievais e cuja continuidade (na sua mesma diversidade) implicam uma tradição de longos séculos, não pode deixar de manifestar-se na memória que a literatura portuguesa também manifesta, por vezes sob o modo de assombração – como assombrações literárias julgo serem “casos históricos” de que a literatura se apropria, com particular destaque para o Sebastianismo e para o mito de Inês de Castro. Eis aqui dois bons exemplos de como a História de Portugal, que está na base destes dois complexos de representação simbólica, fecunda de modo indelével a literatura e nela faz transparecer, em inúmeras e diferenciadas representações, o peso da história.
Que as letras e a literatura tenham sido e continuem a ser, muitas vezes, um elemento decisivo na constituição das fontes historiográficas é para todos uma evidência. Que a história é, analogamente, um manancial quer de conteúdos quer de procedimentos discursivos com os quais a literatura dialoga muitas vezes intimamente é algo que importa igualmente reconhecer. Por isso, trata-se aqui de identificar alguns dos modos preferenciais que tais relações estabelecem, chamando a atenção para a importância simbólica que assumem na nossa percepção, hoje, do que é a história de Portugal e a literatura portuguesa. Há por isso que sublinhar o facto de que ambas representam um acesso mediado ao passado, reconhecendo nele uma alteridade constitutiva. A ideia de perda, que Paul Ricoeur (La Mémoire, l’histoire, et l’oubli, 2000) sublinha como elemento constitutivo do carácter passado do passado, deve também ser reconhecida como fundando as diferentes formas sob que história e literatura se relacionam com o que, sendo passado histórico (isto é, sedimentado enquanto fenómeno histórico), é trazido pelo discurso para o presente da escrita e da leitura.