A combinação das duas características: a história do passado, que faz de Herculano o nosso primeiro romancista histórico; e a história do presente, que o traz para o palco das convulsões e mudanças sociais da transição entre o Antigo Regime e a época contemporânea, deve-nos permitir entender que nunca se trata, para Herculano, apenas da história do passado. Pelo contrário, a ideia de que ao tornarmos esse passado presente estamos a falar do que nos rodeia, das opções, lutas e valores em que activamente cada um de nós participa, sublinha o carácter central da narrativa histórica em Herculano como narrativa de cidadania. Neste contexto, a obra de Alexandre Herculano-escritor surge como um edifício consistente, em que ficção histórica e discurso historiográfico se fecundam mutuamente. Em 1840, num artigo d’O Panorama, Herculano chegou a interrogar-se se o romancista histórico poderia ser mais verdadeiro do que o historiador no tratamento dos sentimentos individual e do carácter colectivo. Podemos dizer que o próprio Herculano não concebe o seu trabalho de escrita sem essa mútua indexação entre o trabalho de arquivo, nomeadamente quando fica à frente da Torre do Tombo, e o trabalho de imaginação, que o acompanha, de uma forma ou de outra, ao longo de toda a sua vida. As obras redigidas no domínio da historiografia são uma parte muitíssimo significativa do percurso de Alexandre Herculano, e devem ser encaradas, no presente contexto, quer pelo seu intrínseco valor quer porque na realidade representam o início da historiografia moderna em Portugal. Ao longo de toda a sua vida, Herculano demonstrou e desenvolveu o seu interesse pela História, em particular pela Idade Média. É por esta razão que as características que atrás pudemos analisar irão surgir em todos os seus romances históricos, também eles parcialmente publicados, em primeira instância, como folhetins em diferentes periódicos (como com Almeida Garrett e sobretudo com Camilo Castelo Branco): Eurico, o Presbítero (1844), O Monge de Cister (1848) e O Bobo (1878, póstumo). Todos eles seguem o exemplo de Walter Scott, enfatizando momentos de transição social em que a crise subitamente se torna inevitável, e abrindo lugar, simultaneamente, ao surgimento de “indivíduos reais”, os heróis que podem constituir referência para gerações futuras. Existe ainda um outro aspecto que, pela sua importância na efabulação histórica herculaniana, deverá ainda ser objecto de algumas considerações. Trata-se do papel desempenhado pela tarefa de reconstituição histórica que assume em Herculano, e contrariamente por exemplo ao que se passa com Garrett, uma dimensão de relevo, aliás decorrente de uma intenção didáctica de carácter social. Na realidade, escrever uma narrativa histórica é ainda mais uma forma de acção, para Herculano, mais uma maneira de participar crítica e activamente na feitura do corpo social em que de tantas outras maneiras ele se empenhou ao longo da vida. A necessidade, pois, da reconstituição histórica explica certas características da ficção de Herculano: a sua insistência no concretismo, na visualidade, na pormenorização, que não são meros meios de dar “cor local”; a preocupação com a componente descritiva, de elementos materiais (o vestuário, por exemplo) mas também de actos ou cenas sociais (saraus, procissões, autos); a forma insistente como utiliza um vocabulário medieval, não só a nível por exemplo da reprodução de expressões coloquiais, exclamações ou expressões idiomáticas, mas ainda a nível da sua própria utilização técnica.