Outra forma de diferentemente “acoplar” a epopeia camoniana com o impossível presente é, no seguimento do poema (quase-)épico de Cesário Verde, “O Sentimento dum Ocidental”, o romance de António Lobo Antunes, As Naus (1988). Se romancista contemporâneo há, em Portugal, para quem a inquietação e a ansiedade de pertença identitária estão no âmago do seu projecto literário, ele é António Lobo Antunes, e as quase 4 dezenas de títulos que publicou desde 1979. Diga-se desde já que tomaremos este romance como uma escrita desviada da epopeia Os Lusíadas – uma paródia, no sentido mais nobre, de homenagem e crítica e desvio histórico, à epopeia camoniana: esta escrita desviada é mais uma das conformações históricas que a reflexão sobre a História vai tomando. Atrás, era a retaguarda junqueiriana que dava forma histórica à memória épica. Aqui, é a reescrita alterada antuniana que revisita a mesma memória e a traz historicamente para o presente, dando conta das transformações a que este presente a tem de sujeitar. Toda a obra antuniana é uma longa reflexão que, integrando uma extrema multiplicidade e diversidade de pontos de vista efabulatórios, não pode nunca deixar de ser reconduzida àquilo a que podemos chamar a condição histórica do Portugal pós-imperial. Mas, enquanto em outros autores esta dimensão pós-imperial era vivida (ou talvez antecipada) como uma porta de acesso ao lugar da pacificação, em Lobo Antunes o que sobressai é a impossibilidade de regressar dessa condição. Quem teve o “conhecimento do Inferno” (título de um dos seus romances), quem conheceu a guerra de África, quem viveu como representante da potência colonial e agente da sua opressão bélica não pode, depois, voltar atrás. Quem acedeu ao Inferno não pode regressar ao Paraíso. A experiência colonial e pós-colonial neste autor é, pois, decisiva, e não se restringe à experiência da guerra, embora esta constitua o núcleo do trauma que fica inscrito, a nível individual e colectivo, na História do país que é Portugal. Por ser um dos mais próximos re-escritores da epopeia (mas não o mais próximo), integro a obra antuniana neste ponto e faço-a seguir da de Gonçalo M. Tavares. Mas Lobo Antunes deve também figurar na memória pós-colonial directa (e não apenas da guerra, mas dos seus choques posteriores), tal como aliás Gonçalo M. Tavares deve figurar na memória (estranhamente diferida entre nós) do Holocausto.