Reserve-se de tudo isto que a épica quinhentista, mormente Os Lusíadas, representa um dos lugares maiores em que Literatura e História se tocam, cruzam e fecundam. Na obra camoniana podemos encontrar, como atrás foi dito, uma espécie de summa do conhecimento historicamente relevante quer para a narração específica que se faz, da viagem de Vasco da Gama, quer para a narração mais lata efectuada da fundação e consolidação da monarquia portuguesa, bem como das relações entre ambos os estratos: entre outras fontes, as leituras de Camões incluem obras de geografia e de astronomia, roteiros de viagens (como o de Álvaro Velho, tripulante da primeira armada de Vasco da Gama à Índia), e textos historiográficos (com particular destaque para As Décadas da Ásia de João de Barros, mas também a obra de Castanheda). Quanto ao conhecimento da História de Portugal, Camões conhecia a fundo os cronistas medievais, e vários outros, como Rui de Pina ou Duarte Galvão. E a forma como a épica faz convergir, como recorda Hélio Alves, verdade épica e verdade histórica (“Corte-Real. A Evolução da sua arte”, 2005, pp. 171-199), enquanto quadro central de estruturação do seu poema, faz da epopeia camoniana um texto cuja consideração é decisiva, quer o consideremos pelo lado da Literatura, quer o olhemos pelo lado da História.
O poema de Camões tem também uma sobrevida pelas vias abertas que o fazem ressoar em variadíssimos textos do futuro. Seguirei algumas dessas linhas de recuperação e transformação da epopeia e da memória camonianas, sublinhando como nessas recuperações se encontra implicada uma ideia de revisitação nacional e interrogação da identidade nacional, das suas características históricas e simbólicas. Podemos dizer, com algum grau de segurança, que a epopeia camoniana passa a ser indistinta de toda e qualquer reflexão sobre a identidade histórica portuguesa, quer para a orientar polarmente para uma ideia de glória do passado nacional (Os Lusíadas foram para tal direccionados na sua versão didáctica mais corrente), quer para cepticamente reflectir sobre o declínio e o fim de Portugal, como sobretudo Oliveira Martins, na Geração de 70, cristaliza enquanto imagem futura, que outros como Guerra Junqueiro ou Fernando Pessoa herdarão e moldarão a seu gosto, como veremos. Sigamos pois, algumas dessas cristalizações e desses ecos da epopeia de Camões, dando conta de como ela não acaba de se reescrever na cena da História e da Literatura portuguesas.