Na sequência dos estudos de Aguiar e Silva (A Lira Dourada…, 2008) pode observar-se que a ideia épica, configurada de forma decisiva em Os Lusíadas, faz parte de um sistema peninsular (e não apenas português) que conscientemente avalia a História como suficientemente digna de ser validada e glorificada pela Poesia. Um dos elementos de tal glorificação ocorre, em Os Lusíadas, pela releitura que é feita da História de Portugal (nela integrando os episódios antecipatórios requeridos pela distância temporal entre o tempo da escrita e o tempo da acção, isto é, todos os factos posteriores à viagem de Vasco da Gama e, naturalmente, anteriores à redacção d’Os Lusíadas). Jorge Borges de Macedo (Os Lusíadas e a História, 1979) tem a respeito da profunda e íntima relação entre Os Lusíadas e a História um livro decisivo, em que analisa as grandes linhas de orientação e as principais características da forma como este texto é fruto de um conhecimento histórico cujos contornos e cujo alcance merecem ser objecto de reflexão, até para se compreender que a ligação entre a epopeia camoniana e a História é substancialmente complexa. A releitura que é feita da História de Portugal centra-se na caracterização de um sentimento patriótico que é feito coincidir, por Camões, com as próprias origens da monarquia portuguesa, e que na urdidura da acção épica vai ligar primeira e segunda dinastias, por um lado a afirmação e a consolidação das fronteiras peninsulares do reino de Portugal, por outro a descoberta de que tais fronteiras existem para que melhor possam ser ultrapassadas e assim se possa, como viria a dizer Pessoa, “cumprir Portugal”.
É desta forma que devemos considerar o imaginário guerreiro e cavaleiresco, plasmado quer no ideal cruzadístico que de alguma forma unifica a História de Portugal, com o seu ímpeto fundador de Reconquista cristã inextrincavelmente ligado ao ímpeto das Descobertas e ao ideal da Expansão, quer na consciência de um sentimento nacional e patriótico que toma a forma histórica de um sentimento anti-castelhano. Os episódios bélicos d’Os Lusíadas devem ser lidos contra este pano de fundo, unindo num fio narrativo as três grandes batalhas que o poema narra: Ourique, Salado e Aljubarrota. A visão dada da 1ª dinastia é assim uma visão de afirmação progressiva da identidade nacional e do reconhecimento de Portugal como uma nação independente.
Não devemos no entanto esquecer, no quadro do poema camoniano e do seu ideal de glorificação da gesta dos Portugueses, simbolicamente contida, in nuce, na viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, que em contraponto ao ideal heróico, que a epopeia camoniana reconhece e canta como o ponto nodal da gesta dos feitos dos Portugueses, encontramos também, dentro do modelo épico relativamente contemporâneo de Os Lusíadas, textos que se abrem a uma dimensão polar oposta. Nestes, a experiência dos desmandos e da “lenda negra” associada a alguns dos relatos historiográficos (Gaspar Correia e Diogo do Couto, entre outros), bem como de outros poemas épicos (por exemplo Jerónimo Corte-Real) e alguns textos narrativos como os da História Trágico-Marítima, surge como aspectos centrais dos poemas.