Para considerarmos a obra de Gonçalo Tavares, Uma Viagem à Índia, como uma reescrita, paródica também, de Os Lusíadas, temos de nos dar conta da existência de um legado heterogéneo no pensamento utópico, que o leva a hesitar entre estabilidade, ou mesmo rigidez, por um lado, e transformação e processo, por outro. A invenção de lugares simbólicos (principalmente literários) que tenham tido a experiência da utopia, sejam eles a Utopia, de More (1516), ACidade do Sol, de Campanella (1623), ou 1984, de George Orwell (1934), necessariamente tende para a primeira hipótese (estabilidade), enquanto a utopia mais imediatamente relacionada com um futuro, desejado ou temido, parece sublinhar a segunda (transformação), como vimos acontecer por exemplo em Pde António Vieira (História do Futuro) ou Fernando Pessoa – e como aliás o grande historiador do pensamento utópico, que foi Ernst Bloch (The Principle of Hope, 1986), sublinha. Fredric Jameson, outro importante ensaísta que se tem debruçado sobre o utopismo sob diferentes perspectivas, propõe a este respeito a distinção entre utopia como “programa” e como “impulso” (“Varieties of the Utopian”, 2002, pp. 1-9), sublinhando as suas diversas implicações. O próprio Bloch está mais interessado na última (o impulso) do que na primeira (o programa). Na realidade, o “princípio de esperança” de Bloch, pelo qual a utopia é vista sobretudo como uma ligação entre o futuro e o presente, ou seja, como uma forma antecipatória de realismo, sublinha uma das principais questões no pensamento utópico: o facto de que ele pressupõe um confronto entre (e por isso uma tomada de consciência de) aquilo que é e aquilo que, nos agudos termos de Bloch, provém do Ainda-Não (Noch Nicht). O saber relativo a este “Ainda-Não-Consciente”, consubstanciado na dimensão antecipatória do futuro, dirige-se a esse mesmo futuro e consiste na esperança de que a utopia e os princípios daquele que será um “mundo melhor” um dia existirão. É este “impulso” e esta dinâmica que seguirei na relação entre por um lado Os Lusíadas, o poema épico publicado por Camões em 1572; e por outro Uma Viagem à Índia, uma reescrita paródica de Os Lusíadas publicada por Gonçalo Tavares em 2010. No texto camoniano, a produção utópica liga-se directamente à atmosfera de sagração intelectual e sexual, de sabedoria (a “máquina do mundo”) e de abundância material, encontrada na ilha, que permite ler este episódio de Os Lusíadas como o clímax do poema: a consagração dos heróis e a construção da utopia dirigida ao futuro e ao “princípio da esperança” que o constitui. A Ilha dos Amores é, em toda a sua extensão, a invenção figurativa do “Ainda-Não Consciente” que tem um papel tão importante no pensamento de Bloch sobre a utopia. É, pois, uma forma decisiva de pensar a História, porque não se trata apenas de imaginar um lugar imaginado, mas, e talvez sobretudo, de antecipar a construção de um futuro histórico que, apesar de não ter ainda data definida, não deixa de ser considerado como tempo-na-História. Uma verdadeira História do Futuro, como queria António Vieira (e Pessoa).