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Herculano, que uma vez definiu a si próprio como um “burguês de quatro costados” e como um “liberal ferrenho” (Cartas, II, 221), quis oferecer, na História de Portugal e em outros escritos situados no entorno temático desta, uma história do terceiro estado em Portugal (ou, mais especificamente, da fração mais privilegiada desse grande agrupamento social). Para tanto, coloca em relevo o lugar geográfico e político em que as classes burguesas vieram a predominar, ou seja, o município – acerca do qual afirma, parafraseando Alexis de Tocqueville, que parecia “ter saído diretamente das mãos de Deus” (História de Portugal, IV, 33-34). No centro dessas identificações, cujas ressonâncias atingem simultaneamente os modos de experimentar o passado, intervir no presente e esperar o futuro, está a temática do municipalismo. É essa uma chave de suma importância para a compreensão da mundivisão política de Herculano. O seu foco no Portugal dos concelhos medievais decorre do raciocínio de que ali estariam as experiências e inspirações que melhor serviriam à agenda da liberalização da política e das relações sociais; agenda com que, obviamente, a partir do presente, se tentava modelar o futuro. Herculano queria ver gradualmente dissolvida a ordem centralista legada pelo absolutismo, e anulado a sua pulsão para gerar mecanicamente cesuras históricas abruptas. Tinha em mente um ordenamento político que garantisse as liberdades individuais e a igualdade jurídica, mas para cuja implementação não se tivesse de pagar o preço da violência revolucionária (História de Portugal, IV, 343; “Instrução pública”, 87). Com poderes locais fortalecidos, ou seja, com a galvanização dos concelhos, seria possível levar adiante uma ampliação orgânica, gradual e pacífica da liberdade e da igualdade (Ledesma, “Las plumas”, 195-200). Segundo Herculano, eram esses os trilhos em que, com relativo sucesso, transcorrera a história portuguesa até o advento do absolutismo, e aos quais cumpria voltar, no presente. Em boa medida, a História de Portugal foi pensada para funcionar junto à sua audiência como uma agulha ferroviária que recolocaria a política nacional nos trilhos certos. A apologia do municipalismo, central componente metapolítico da História de Portugal, e também vocalizada em inúmeros outros textos de Herculano, é na verdade a outra face da moeda em que está inscrita a sua crítica do centralismo – que incide, aliás, tanto sobre a política dos estados quanto sobre a da própria Igreja católica. É precisamente esse impulso contestatório que estará por detrás de A origem e o estabelecimento da Inquisição em Portugal, cujos três volumes serão publicados, respectivamente, em 1854, 1855 e 1859. Não é, todavia, possível compreender bem os propósitos e significados apensados a esse trabalho sem remeter à polêmica que marcou a recepção da História de Portugal. O primeiro e o segundo dos dois mais extensos escritos de história de Herculano estão, assim, densamente entrelaçados, e na composição dos fios que os ligam está presente muito mais do que a pura curiosidade epistêmica. A polêmica teve por estopim questões factuais, sobretudo a relativa à historicidade do chamado milagre de Ourique – o mito histórico segundo o qual Jesus Cristo teria aparecido a Afonso Henriques no campo da batalha mais decisiva para a emancipação política portuguesa, legitimando com isso a moralmente complicada linha de ação seguida por este, que logo viria a ser o primeiro rei de Portugal. No seu livro, Herculano não dedicara muita atenção à batalha de Ourique, o que por si só já correspondia a uma tomada de posição em desfavor da visão tradicionalista da história nacional. Assinalara que o evento estava cercado de “fábulas não menos absurdas que brilhantes”, apontando que o mesmo não figurava nas crônicas árabes e só era mencionado muito brevemente pelos cronistas cristãos do século XII (História de Portugal, I, 429; 435). No aparato de crítica documental constante do final do volume, ainda comenta que a aparição de Cristo na batalha tinha lastro num “mal forjado” documento (História de Portugal, I, 658): o suposto relato da batalha pelo próprio Afonso Henriques, somente “descoberto” em finais do século XVI (Cintra, “A lenda de Afonso I”, 73-74). |
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