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Em linha com tal propósito, o principal eixo narrativo do livro procura dar conta das intrincadas negociações entre Lisboa e Roma, que em 1536, ao cabo de mais de vinte anos, levariam ao estabelecimento do tribunal inquisitorial. Segundo Herculano, a Inquisição portuguesa foi o produto do conflituoso e nefasto encontro da corrupção generalizada na Cúria romana com a degradação moral imposta à monarquia portuguesa pelo avanço da centralização absolutista nas primeiras décadas do século XVI. Diversos personagens históricos são apresentados no livro como vilões, mas nenhum deles recebe a combinação de qualificações negativas reservada a D. João III. Herculano apresenta o estabelecimento da Inquisição como o produto da intenção pessoal deste ator político que, como faz questão de reiteradamente afirmar ou sugerir, esteve longe de dispor das virtudes e talentos que seriam de se esperar de um bom monarca. O livro também dá destaque às tentativas dos cristãos-novos de obstaculizar as tratativas diplomáticas em torno da implantação do tribunal inquisitorial, amiúde por recurso ao pagamento de subornos. Além disso, rememora de modo enfático e condenatório inúmeros episódios de perseguição popular ou inquisitorial aos judeus da Península Ibérica. Ao colocar em primeiro plano experiências fortemente negativas como as ligadas a morticínios, fanatismo, tirania e corrupção Herculano produz um superávit de moralização historiográfica, que não se restringe aos seus efeitos sobre a argumentação política e avança sobre o terreno da religiosidade. Uma das passagens do texto em que isso fica evidente é aquela em que o autor chega a sugerir que estaria talvez a atuar como um “instrumento da justiça divina” (História da Inquisição em Portugal, I, 11). Uma significativa mudança de ênfase que se pode perceber no livro sobre a Inquisição e, em geral, nos escritos de Herculano datados da década de 1850 em diante é o crescente recurso a imagens e formas retóricas sinalizadoras de descrença no futuro do país. Enquanto o Herculano da História de Portugal é mais propositivo e mais otimista quanto ao futuro, na década de 1850, após a polêmica em torno do milagre de Ourique, o fracasso do seu grupo político mais próximo em dar o tom à Regeneração, as múltiplas polêmicas na imprensa, as contendas pessoais na Academia das Ciências e na Torre do Tombo, o avanço do ultramontanismo, a curta experiência administrativa à frente da Câmara de Belém, Herculano torna-se mais reativo e pessimista, firmando-se na crítica ao centralismo. Com efeito, esse agitado período marcou a consagração de Herculano como intelectual político (Saraiva, Herculano e o Liberalismo, 23-24), como atestado na sua eleição à revelia como deputado por Sintra em 1858 (eleição essa que ele, aliás, não acatou). Mas dessa sua elevação ao patamar de figura pública central no teatro político resultou também uma sensível subida de tom nas críticas que lhe eram endereçadas por parte de adversários, alguns dos quais de dentro do campo liberal, e que já não se continham dentro dos limites de um certo respeito pela sua autoridade literária (Macedo, “A tentativa histórica, xciii-xcvii). Soma-se a isso a pouca influência intelectual que efetivamente conseguiu exercer sobre o rei D. Pedro V, e, enfim, também a morte precoce do monarca, por quem se disse várias vezes ter sido muito afeiçoado (Cartas, I, 195-196; 203) – ainda que também sejam conhecidas algumas fricções na relação entre ambos (Cartas inéditas, 87; 97; Mónica, D. Pedro V, 176-177). Ao cabo desse que foi, na sua trajetória, o decênio de mais frequente e intensa atuação política (e que tanto contrasta com a relativa calmaria em que estivera de 1842 a 1850), Herculano passa a nutrir uma certa atitude de enfado com atividades intelectuais e literárias. Em 1858, em pleno reinado de D. Pedro V e estando no governo o Partido Histórico, ele declarava publicamente ter perdido o elã que o animara nos seus estudos históricos anteriores e que só via “o dia em que possa depor a pena, e sumir-me na mais completa obscuridade”. E arremata: “será o melhor dia da minha vida” (“Do estado das classes servas”, 240-241). |
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