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É curioso que ao mesmo tempo em que se intensificava a sua atuação política, como publicista e administrador municipal, Herculano – que, lembre-se, era também o responsável pelas bibliotecas reais de Lisboa – tenha atuado intensivamente na recolha e edição de documentos históricos. Em 1844, em meio ao seu “autoexílio” da política ativa, tinha organizado a publicação dos Anais de D. João III, de autoria de Frei Luiz de Sousa, um manuscrito antes dado como perdido. Mas o seu maior legado nesse campo seriam os Portugaliæ Monumenta Historica, cujos muitos volumes começam a ser publicados a partir de 1856. Abrigado na Academia das Ciências, e associado a duas longas expedições por arquivos do Centro e do Norte do país, esse empreendimento coletivo absorveu parte das suas energias intelectuais por cerca de duas décadas (Coelho, “A. Herculano”; Serrão, Herculano e a consciência do Liberalismo, 121-133). Herculano vai combinar de maneira complexa o seu ativismo político anti-centralista com a sua habilidade para o manejo da documentação histórica nos três volumes do livro que ficaria conhecido, a partir da segunda edição, por História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Esse trabalho tem de ser lido como uma extensão da espiral polêmica iniciada em 1850 (Buescu, O Milagre de Ourique, 95-96). É, enfim, uma transmutação dessa polêmica num esforço investigativo de longuíssimo fôlego, que não tenta disfarçar as marcas do gesto político de que faz parte. Isso foi, aliás, admitido por Herculano, que no prefácio à terceira edição da História de Portugal (1863), obra que tomava por estritamente imparcial, comentou que “ao livro sem intenção política, fiz seguir um que a tinha” (História de Portugal, I, 5). A mesma diferença ficava já indicada também no subtítulo que acompanhou a primeira edição, “tentativa histórica”, o qual, por comparação com as enfáticas reivindicações de imparcialidade associadas à História de Portugal, sinalizava para a condição mais precária de uma interpretação abertamente politizada e politizante. (Assis, “A. Herculano entre a imparcialidade e a parcialidade”, 310-316; Macedo, “A tentativa história”, lxxii-lxxiv; c). Herculano não endereça o livro sobre a Inquisição ao público em geral ou aos seus adversários políticos, mas antes à fração do público que como ele comungava de certas convicções liberais fundamentais. Quer, como afirma, “fortificar na fé liberal os tíbios do próprio campo e premuni-los contra as ciladas dos trânsfugas” (História da Inquisição em Portugal, I, 9-10). Mostrava-se fortemente preocupado com a possível coalização entre duas tendências a que associava sérios riscos de retrocesso político na metade do século XIX: o centralismo eclesiástico avançado pelo Papa Pio IX e o neocentralismo parlamentarista seguido pelos artífices da Regeneração em Portugal (Macedo, “A tentativa histórica”, xxxv-xxxvi). Simultaneamente política e historiográfica, a sua intervenção articula-se em torno da escolha de um tema do passado que ele julgava ser particularmente embaraçoso aos partidários contemporâneos da reação. Herculano mergulha, então, nas primeiras décadas do século XVI para tentar trazer à consciência do presente aquilo que outrora haviam sido os piores resultados do livre desdobramento dos princípios políticos que queria combater. A sua ideia fundamental é, portanto, conduzir historiograficamente o centralismo político e religioso, percebido como a grande ameaça ao seu presente, a uma espécie de tribunal da história, onde se fará de tudo para o condenar e para anular os seus efeitos sobre a história futura. |
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