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Embora não bastem para uma explicação suficiente, todas essas experiências ajudam a entender por que, por volta dos cinquenta anos de idade, Herculano decide mudar-se para o campo. Sempre tivera certa disposição anti-citadina e anti-lisboeta, sempre apreciara o contato com a natureza e já havia adquirido traquejo com atividades agrícolas. Ainda no final dos anos 1840, tinha arrendado uma horta não distante da sua residência da Ajuda, onde chegou a produzir laticínios. Entre 1855 e 1863, participara juntamente com outros dois amigos num empreendimento agropecuário de maior porte situado na zona da Serra da Arrábida. Em 1859, adquire uma propriedade rural nos arredores de Santarém, a Quinta de Vale de Lobos, onde vai a partir de meados da década de 1860 residir durante a maior parte do tempo, passando a dedicar-se com seriedade à produção agrícola (Nemésio, “O lavrador”). Deixa – como formulou ironicamente Ramalho Ortigão – “de fazer história para fazer azeites” (cit. em Nemésio, “O retiro”, xi). Estiliza a mudança como uma espécie de exílio voluntário, gerando assim de modo autoconsciente um ponto de referência crucial para processos memoriais que resultariam na sua própria mitificação. Mas também a toma como uma oportunidade de contribuir, pela força do seu exemplo, para um modelo agrarista e descentralizado de desenvolvimento econômico que na Lisboa da segunda metade do século encontrava cada vez menos defensores. Por aí já se pode ver que o “exilado” não cortou os laços que o ligavam ao mundo público português; apenas alterou a sua maneira de tentar intervir sobre o mesmo. Ainda assim, nesta sua última década de vida, a tônica das suas avaliações sobre as grandes questões nacionais é dada por um misto de ceticismo e desengano. Numa carta de 1872, ele que afirma que “o espetáculo da última enfermidade de uma nação é sempre triste, mas é duplicadamente doloroso se essa nação é a nossa” (“Correspondência inédita”, 292; ver também: “A supressão das Conferências do Casino”, 168; “Cartas sobre o casamento civil”, 35). Prognósticos pessimistas como esse decorrem de décadas de uma vivência política marcada pela adesão intransigente a uma “ética da convicção” e por uma apreciação quase sempre muito negativa do que, de um outro ponto de vista, se poderia enquadrar sob o manto da “ética da responsabilidade”. No entendimento de Max Weber, ante um tal predomínio unilateral de uma ética regida por imperativos absolutos seria virtualmente impossível exercer liderança política eficaz e sustentável. Sem paciência para perfurar “tábuas duras”, excessivamente vulnerável à percepção de que o mundo era “estúpido ou vulgar demais para aquilo que ele lhe quer oferecer” (Weber, “A política como vocação”, 136-139; trad. ligeiramente modificada), Herculano não tardou em retroceder todas as vezes que se aproximou do núcleo duro da vida pública portuguesa. Foi exatamente isso o que aconteceu nas duas ocasiões em que se aventurou pela política ativa, no início da década de 40 e, depois, no início da década de 50. Da primeira retração resultou a sua conversão em historiador; da segunda, a sua transmutação em líder intelectual oposicionista. Quando se cansou desta última função, retirou-se então para Vale de Lobos para também se dedicar à agricultura. Pouco à vontade na condição ator político direto, refratário ao cotidiano das “máquinas” partidárias e insatisfeito com as transigências de lideranças menos sobrecarregadas de princípios morais do que ele, Herculano exigia demasiado dos governos e dos políticos, certamente mais do que a política da sua época poderia realizar – um “governo de anjos”, na ironia condescendente do Visconde de Algés (citado por Oliveira Martins, Portugal contemporaneo, II, 295). Por outro lado, os mesmos principismo e firmeza de convicções que tantas frustrações lhe renderam no presente revelar-se-iam alicerces decisivos da sua glória futura. Em larga medida, foi o seu modo profético, implacável e utópico de abordar os problemas nacionais que o tornou “uma espécie de reserva moral” a que viriam a recorrer diferentes gerações vindouras, em meio a variadas conjunturas críticas (Pereira, “Alexandre Herculano”, 222-223). |
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