Todavia, na sequência das invasões francesas, Portugal viveu um período de conflitos militares e grande instabilidade política que vai da revolução liberal à guerra civil da Patuleia. Haveria que esperar pelo decénio de 1840 para que a renovação da historiografia se processasse no conhecimento das mais avançadas historiografias europeias da época. Uma profunda mutação se operara entrentanto na própria escrita da história em toda a Europa letrada: esta passara a centrar-se num novo protagonista e referente identitário, a nação.
E é nos primórdios desse tempo instável de construção do Estado liberal que Alexandre Herculano dá a conhecer n’ O Panorama uma série de artigos sobre antigos cronistas portugueses dos séculos XV e XVI, pequenas biografias intelectuais em que procurava caracterizar as respectivas obras tendo em conta o condicionalismo político em que se inscreviam. O historiador considerou a revolução liberal como uma ruptura com a tradição histórica, necessária, mas comportando um risco de corte na memória social. Compreende-se assim a atenção que atribuiu à memória construida pelos cronistas e a crítica que teceu à história fabulosa alimentada de mitologias das origens de Portugal (identificação entre Portugueses e Lusitanos, milagre de Ourique, Cortes de Lamego). Registe-se o que mais valorizava no grande cronista português tardo-medieval Fernão Lopes: 1) o carácter poético e dramático das suas narrativas que conseguira evocar o passado na sua inteireza (não deixa de ser interessante que o homem que viria a fundamentar a autonomização da história em relação à literatura assim pensasse nos seus primórdios) ; 2) o facto de as suas crónicas conterem a história de uma geração e, mais do que isso, transmitirem a vida dos diversos grupos sociais e das multidões em movimento. Para Herculano, Fernão Lopes prefigurara de algum modo o historiador da nação que ele próprio pretendia ser no século XIX. Ao invés, incluia as obras de outros cronistas na categoria de uma “literatura cortesã”, que traçara em seu entender a biografia apologética do príncipe (caso de Rui de Pina). No seu olhar de liberal, defensor do municipalismo à maneira de Tocqueville, Herculano via no estado absoluto e no processo de centralização monárquica em marcha desde os finais do século XV a explicação para a emergência deste género de biografias reais. E interrogava-se: “que outra forma podia ter a história numa época em que a organização social tinha sumido o povo, a nobreza, e ainda o clero, debaixo do trono do monarca?” (“Historiadores portugueses”, Opúsculos IV, s.d.[1840], 183). A valorização do lugar do indíviduo na história (de que daria mostra na sua História de Portugal ,1846-53) e o seu ideário liberal e romântico não impediam Herculano de compreender a historiografia num contexto político e social. Se a ignorância do passado histórico era a seu ver sintoma da decadência do corpo social, havia decerto que dar a conhecer os antigos cronistas.