Este claro predomínio, no terreno da vulgarização, das biografias de recorte tradicional, pesado conteúdo moralizante e inequívoco conservadorismo político, pareceria configurar uma espécie de relação simbiótica entre os agentes deste tipo de literatura e aqueles que representavam o regime político vigente. A leitura que, em Portugal, se fez de obras como as de Emerson e Carlyle (a primeira traduzida ainda na Primeira República, mas a segunda, por problemas de edição, já em meados da centúria) reflectia, em boa medida, a fácil adequação das teorias sobre os grandes homens a um modelo autocrático assente na função e no carisma do líder, domínio em que a história nacional – desde os tempos mais remotos até o presente – estaria recheada de exemplos. M. Gonçalves Viana chamar-lhes-ia, para assim abarcar todas as áreas em que o génio português se manifestaria, os “dirigentes visíveis ou invisíveis” da nação. (M.G. Viana, op. cit., p.16, e Nuno Álvares Pereira: arquétipo perene, 1966)
Adaptava-se contudo bem a noção de grande homem, já foi dito para um período anterior, a discursos que se situavam muito para lá, ou mesmo na posição diametralmente oposta, do ideário oficial espelhado na maioria da produção biográfica. Em clima de regeneração, ideal que atravessou, transversal aos vários programas políticos, toda a primeira metade da centúria de Novecentos, a biografia foi instrumento de pedagogia activa e, de alguma forma, no seu uso plural, lugar de dissonância nesses anos de imposta unanimidade. Dissonância, desde logo, em relação ao modelo estritamente convencional do registo de vida que dominou ao longo de todo o período estado-novista. Entre finais dos anos ’30 e a década seguinte, por exemplo, Agostinho da Silva inaugurava nos “Cadernos da Seara Nova” (e prosseguia, por sua iniciativa, nos “Cadernos de iniciação cultural”) uma série, que se provaria longa, de biografias sobre vultos eminentes da história mundial. De intuito explicitamente pedagogista, nela se rompiam os limites estreitos da portugalidade, bem como os dos feitos de armas e da governação, à semelhança do que várias décadas antes já se havia proposto como critério para reforma dos curricula escolares. Através de biografias de cunho educativo, “não romanceadas”, forneceriam estes heróis dos novos tempos, herdeiros da democratização operada na centúria anterior, matéria para uma ansiada “revolução cultural e política”. (H. Briosa e Mota, “...ou como, através do relato de vida de grandes homens...”, 2003, pp. 7-14)