Mas mesmo no terreno mais convencional das figuras insignes da conquista e da governação, esse ambiente de regeneração, traduzido na “revisão” da história que se pretendia algumas obras levassem a cabo, fazia-se sentir em produtos menos alinhados com o discurso dominante. Num dos poucos textos de reflexão dedicados neste período ao género biográfico, mesmo que em registo de introdução a uma obra, o jornalista, escritor e anarquista Mário Domingues chamava mesmo à escrita biográfica em torno das grandes personagens “a mais alta aspiração do leitor de hoje”, capaz de elevar a sua consciência enquanto, ele próprio, agente da história e, em consequência, a sua condição.
Discurso igualitarista de ressonância republicana, matizado por uma evidente admiração por O. Martins e pelo reenvio sistemático aos grandes nomes do passado nacional, o texto de M. Domingues revelava tanto do senso comum historiográfico (como cabia a uma obra patrocinada pela FNAT) quanto da consciente e plural utilização do género enquanto arma de intervenção na sociedade. Ele próprio autor prolixo de biografias históricas de divulgação – sobretudo na popularíssima “Série Lusíada”, que a Romano Torres faria sair entre o início dos anos ’50 e o início dos ’70 –, serviram-lhe as figuras retratadas, maioritariamente régias, não tanto para sublinhar o seu poder de acção, mas antes, ao sujeitá-lo a condições não-contingentes, para fazer da sua exemplaridade incentivo à participação activa do leitor na marcha social. Sua obra exclusiva, o impressionante volume de biografias editado pela Romano Torres nessa colecção ter-lhe-á em grande medida valido, não sem ironia e a despeito de mensagens mais ou menos subliminares, uma condecoração oficial em pleno Estado Novo – tal como, de resto, a recebeu Elaine Sanceau, outra biógrafa de sucesso no campo da expansão, de sentido inequivocamente conservador. Que posições concorrentes se plasmassem em obras de cariz biográfico é tanto mais significativo. Aí, mais que noutros lugares, sobre o pano de fundo da literatura exemplar, se debatia na prática o papel e o lugar do indivíduo (e do colectivo) na história. (M. Domingues, Grandes momentos da história de Portugal, 1958: 9-19)
Das potencialidades da biografia histórica como arma de intervenção de largo alcance se alimentou a crescente edição desse tipo de obras nas décadas centrais do século.