Contestando Hegel, para quem o instante histórico é portador de intrínseca legibilidade, homogeneidade continuidade e significado cultural próprio (objetivação do Espírito no real fenomenológico em que se traduz), Nietzsche abriu a brecha na apreensão conceptual disjuntiva, conflitual, descontínua e eruptiva da historicidade da cultura. Obscuro sem o acesso ao estudo do Tempo antropológico e histórico e ao espaço das suas transitórias e metamórficas revelações, a cultura constitui assim o mundo de representações do mundo, humano incluso, fragmentado mesmo ao evidenciar co-incidente locução histórica da temporalidade e objeto essencial dessa historicidade, pois, autentica R. Chartier, se “as próprias representações do mundo social são componentes da realidade social”, então a história da cultura (também) é uma história das práticas culturais (in Hunt, A nova história cultural, 1993, pp. 230-33) atida ao estudo da produção e circulação de textos, artefactos e saberes e sua «receção» social e individual. Ora, colere (>cultus) associa semas de colheita, esforço, produto: cultura é tentativa (escola, escolha, ex-colere) e safra. Se a enxúndia mediática tende hoje a abater arcanas fronteiras semióticas das bipartições, cultura das elites e cultura popular; científica e de massas, etc., para a perspectiva da história da cultura nos pares sociológicos resistem úteis hipóteses teóricas. Mas sabendo-se que a subjetivação – mesmo no limiar mais normativo do texto – ocorre no momento da «leitura», a dessubjetivação do sujeito cognoscente é assim a ilusão que o paradigma sociológico, sistémico e naturalista, nutriu enquanto analisou a cultura como scientia iluminista, cognitio naturalis rerum omnium, degradando o rasgo da vis libera, vis libertatis que na própria enunciação se anuncia.
2. A «coisa». Demarcados, ao mínimo, os termos do problema, consciência cultural é dado relativamente recente nessa «invenção recente» à escala cósmica que o ser humano é (Foucault, Baudrillard). O movimento da Erudição que precede e segue o Aufklärung, alastra em pequenos círculos (mais adequados à concentracidade das Luzes) e orienta a consciência histórica no estudo das letras pátrias. Entende-se. Particularismo e providencialismo, vitais à teogonia tradicional e ao imaginário cultural e político que reflete diferentes níveis de agregação social espartilhando a estrutura, serão refutados pelo universalismo das Luzes, melhor, pela sua cultura antropocrítica. Para se lerem aqueles conceitos, diga-se que a ideia de “nação” (diversa ideia de patria), demarca desigualmente a diversa consciência dos níveis de agregação social, dada a hegemonia de sintaxes sociais, não de sintaxes políticas ou religiosas, que realçam a multiplicidade e relativa alforria das diversas formas e formulações horizontais e verticais de interdependência social, em detrimento da noção, embrionária mesmo, de solidariedade «nacional».