O fim tardio do colonialismo português, a forte ideologização da questão colonial perante a rejeição da comunidade internacional, a premência da expansão portuguesa e a sua identificação como pilar da nação, permitem compreender as dificuldades de organização de um discurso científico e historiográfico liberto da ideologia colonial, que se manteve surdo à recuperação da voz autónoma do Outro, recusando a sua história ou dissolvendo-a na história dos descobrimentos e da expansão portuguesa. Desmontar a articulação existente entre a ideologia e as produções científicas de um longo tempo colonial constitui um passo importante para uma renovação do conhecimento sobre as sociedades colonizadas que se reconstruíram com a independência, bem como uma condição indispensável para assegurar a mudança da escrita da história portuguesa.
Ideologia colonial e conhecimento ideologia e dominação colonial
Em meados do século XX, enquanto a Europa negociava as independências africanas e asiáticas, Portugal reforçava o carácter obstinado do seu colonialismo, apoiado numa construção ideológica que assegurava a coesão nacional, garantia a tranquilidade dos colonos e orientava a produção do conhecimento. Se, no plano interno, os responsáveis políticos se serviam do racismo difuso que caracterizava as relações dos portugueses com os colonizados, no plano internacional, mobilizavam os ‘direitos históricos’ e a singularidade do seu colonialismo para recusar as mudanças da história. Organizado em três grupos de mitos que, embora em sintonia com as ideologias coloniais europeias, apresentavam formulações autónomas, o sistema ideológico colonial português adquiriu uma densidade teórica singular, cuja força pode ser medida pela sua duração e capacidade de resistência face à desaparição da própria dominação colonial. Estes três grupos de mitos, pensados em três dimensões – antropológica (a superioridade racial e cultural do homem branco e o seu corolário «a missão civilizadora»), histórica (o papel fundador dos descobrimentos portugueses no conhecimento e a secular continuidade da presença de Portugal no mundo), sociológica ( o lusotropicalismo de Gilberto Freyre, provando as relações harmoniosas sempre estabelecidas pelos portugueses com outros povos, as virtudes da «assimilação» e as evidências da ausência de racismo nacional) - , fixaram de maneira duradoura a legitimidade científica e histórica das opções coloniais portuguesas.