Se a concepção de uma «África portuguesa» dirigia a organização da historiografia nacional, concentrando num espaço único e homogéneo, centrado em torno dos portugueses, as diversas realidades africanas, foi ela obrigada frequentemente a romper essa unidade histórico-espacial e a elaborar estudos monográficos, exigidos pela própria operacionalidade colonizadora.
O esforço histórico não era destinado a servir a história, mas a libertar os elementos capazes de provar os direitos portugueses relativos à dominação dos territórios e dos homens africanos. Não se tratava de definir o conhecimento do passado, mas de dar conta das maneiras de fazer e de dizer necessárias à concretização do projecto colonial português, organizando o tempo e o discurso, propondo periodizações históricas, seleccionando acontecimentos, escolhendo temas, tendo apenas em conta as problemáticas nacionais ou internacionais mais significativas dos séculos XIX e XX, embora as realidades novecentistas primassem pelo silêncio na escrita dos historiadores.
Integradas no quadro mítico geral, quatro ‘verdades históricas’, que não apresentavam nenhuma originalidade, serviram para organizar «na continuidade» a escrita da história da «África portuguesa», que remetia os africanos para o espaço de um silêncio sem história, só rompido pelo impacto civilizador das acções portuguesas (Rego, O Ultramar Português no Século XIX, 1969, VII-VIII).
A primeira ‘verdade histórica’ não podia deixar de ser a do «papel pioneiro» dos portugueses na abolição do comércio negreiro e da escravatura, permitindo o fim de uma exploração arcaica das riquezas e a valorização dos territórios africanos. Duas linhas de raciocínio dominam a escrita para, primeiro, ilibar os portugueses desse crime que não cometeram, pois não foram os inventores do comércio de “ ébano humano”, a responsabilidade sendo dos próprios africanos que forneciam a «mercadoria» (Cunha Leal, O Colonialismo dos Anticolonialistas, 1961, 65-66); segundo, mostrar a posição portuguesa, centrada na “figura heróica” de Sá da Bandeira, na linha da frente das mudanças à escala mundial (Rego, Idem, 62). Não se tratava agora dos descobrimentos, mas de devolver aos portugueses o papel pioneiro na abolição da escravatura “que nós começámos a abolir quando a Inglaterra a defendia ainda pela voz dos seus parlamentares e dos seus estadistas» (Cordeiro, Questões Coloniais, 1934,15).