A este fenómeno, ou a esta “época de hipermnésia”, como lhe chamou Castelo Branco Chaves, não foi obviamente estranha a relativa democratização do acesso ao livro, nem essa alteração pronunciada no perfil da personagem retratável, especialmente pela via da abertura do género à contemporaneidade e ao confronto político. O clima era, por ironia, propício à perpetuação, ainda que com novos actores, do tom panegírico que até aí tão bem casara com o género biográfico e as concepções mais tradicionalistas da escrita da história. Será verdade que o predomínio do registo cronístico, mais ou menos mitigado, e a eleição preferencial de figuras exemplares provenientes das esferas das armas e da governação se foram tornando menos nítidos no período liberal – mas não desapareceram. Não apenas continuaram a marcar a obra de autores de feição conservadora, como, no reverso da medalha, a daqueles que viram na publicitação das façanhas nacionais e dos percursos singulares uma via privilegiada de apologia do novo regime e da nova ordem social, encarnados pelos seus maiores (mas também, a espaços, menores) expoentes. Em mais que um sentido, como se verá, o grande homem das visões democratizantes do Liberalismo consistirá, sobretudo, numa reformulação do tradicional herói do passado. (C.B. Chaves, Memorialistas portugueses, 1978, p.15; F. Catroga, A historiografia de Oliveira Martins, 1999, pp.448-449)
Não obstante o comprometimento cívico e político, distintamente nacionalista quando não propagandístico, que caracterizou esta nova fase da escrita biográfica, o seu evidente vigor não foi um produto estranho aos circuitos mais restritos, e em vias de especialização, da actividade historiográfica. No novo Curso Superior de Letras ou, mais tarde, nas faculdades de letras, como na ACL, no Instituto de Coimbra ou na Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), a biografia histórica foi tanto produto erudito – e, no trilho de um Positivismo nem sempre adoptado a rigor, via de reflexão sobre a determinação e a indeterminação em história – quanto veículo privilegiado de intervenção do historiador na sociedade do seu tempo.
Não se perdera, de facto, sob a instabilidade política e social desses anos, a tradição erudita herdada da centúria anterior; antes, foi-se cimentando e assegurando larga longevidade como última instância da autonomia e da especificidade do labor historiográfico.